Como resolver o problema do transporte público lotado em São Paulo

Por Anônimo bêbado falando sozinho num 917H lotado, sexta-feira às 18:30

Precisa de um Bin Laden. É o único jeito. Tem que explodir tudo. Explode essa gente que acaba o problema.

Não… não precisa. Tem só que devolver. Devolve todo mundo. Quem é de Minas, quem é do Nordeste. Só fica aqui quem nasceu aqui. Não ia sobrar nem um milhão.

Devolve tudo! Faz exame de DNA pra confirmar quem nasceu aqui mesmo. Não vai sobrar nem um milhão.

Se eu fosse vereador, ou prefeito, ou alguém que pode mandar em alguma coisa, devolvia todo mundo!

Epílogo

“Ah, aleluia! Tinha um homem falando besteira aqui. Pior que ônibus lotado é essa gente gritando.” (mulher mal-humorada ao telefone, após o autor do texto descer)

Illich sobre a bicicleta

“O homem move-se com eficácia sem ajuda de qualquer aparelho. Faz caminho a caminhar. A locomoção de cada grama do seu próprio corpo ou da sua carga, por cada quilômetro percorrido em cada dez minutos, consome-lhe 0,75 calorias. Comparando-o a uma máquina termodinâmica, o homem é mais rendível que qualquer veículo motorizado, que consome pelo menos quatro vezes mais calorias no mesmo trajecto. Além disso, é mais eficiente que todos os animais de peso comparável. […]

O homem inventou, há um século, uma máquina que o dotou de uma eficiência maior ainda: a bicicleta. Tratava-se de uma invenção cheia de novidade, à base de materiais novos, impensados nos tempos do jovem Marx e combinados numa engenhosa tecnologia. […] Com a bicicleta o homem ultrapassa o rendimento possível de qualquer máquina e de qualquer animal evoluído.

Além disso, a bicicleta não ocupa muito espaço. Para que 40 000 pessoas possam cruzar uma ponte numa hora movendo-se a 25 km por hora, é necessário que aquela tenha 138 m de largura se viajarem de automóvel, 38 m se viajarem de autocarro e 20 m se o fizerem a pé; em contrapartida, se forem de bicicleta, a ponte não necessita mais de 10 m de largura. Só um sistema hipermoderno de comboios rápidos a 100 km por hora e sucedendo-se a intervalos de 30 segundos conseguiria passar aquela quantidade de gente por uma ponte semelhante no mesmo tempo.

Não apenas em movimento, mas também estacionado, existe uma diferença enorme entre o espaço que ocupa o veículo potencialmente rápido e a bicicleta. No espaço em que se encontra 1 automóvel cabem 18 bicicletas. Para saírem dos parques de estacionamento de um estádio, 10 000 pessoas em bicicleta necessitam de uma terça parte do tempo que precisa o mesmo número de pessoas que utilizam autocarros.

Com bicicleta o homem pode cobrir uma distância anual superior, dedicando-lhe no total menos tempo e exigindo menos espaço para o fazer e muito pouca inversão de energia física que não seja parte do seu próprio ciclo vital.

Além disso, as bicicletas são baratas. Com uma fracção das horas de trabalho que a compra do automóvel exige ao gringo, o chinês, ganhando um salário muito mais baixo, compra a sua bicicleta, que lhe dura toda a vida, ao passo que o automóvel, quanto mais barato, mais depressa tem de ser substituído. O mesmo se pode dizer a propósito das estradas. Quanto maior for o número de cidadãos que se desloquem de automóvel para as suas casas, tanto mais se corrói o território nacional. O automóvel está, inevitavelmente, ligado à estrada, o que não acontece com a bicicleta. O ciclista, quando não pode ir montado na bicicleta, empurra-a. O raio diário de trajectos aumenta para todos por igual, sem que por isso diminua para o ciclista a intensidade de acesso. O homem que dispõe de uma bicicleta converte-se em dono dos seus próprios movimentos, sem estorvar o vizinho. Se há quem pertenda que em matéria de circulação é possível conseguir algo de melhor, tem agora oportunidade de o provar.

A bicicleta é um invento da mesma geração que criou o veículo a motor, mas as duas invenções são símbolos de avanços feitos em direcções opostas pelo homem moderno. A bicicleta permite a cada um controlar o emprego da sua própria energia; o veículo a motor, inevitavelmente, torna rivais entre si os utentes, por causa da energia, do espaço e do tempo. No Vietname, um exército hiperindustrializado não conseguiu derrotar um povo que se desloca à velocidade da bicicleta. Isto deveria fazer-nos meditar: talvez a segunda forma do emprego da técnica seja superior à primeira. Naturalmente, fica ainda por ver se os vietnamitas do Norte estão dispostos a permanecer dentro dos limites de velocidade que são os únicos capazes de respeitar os próprios valores que tornaram possível a sua vitória. Até ao momento presente, os bombardeiros americanos privaram-nos de gasolina, de motores, de estradas, e origaram-nos a empregar uma técnica também moderna, muito mais eficaz, equitativa e autónoma do que aquela que Marx poderia ter imaginado. Falta agora ver se, em nome de Marx, não se vão lançar numa industrialização quantititativamente tão superior àquilo que Marx pôde prever que se torne impossível a aplicação dos ideais por ele formulados.”

Ivan Illich, “Energia e Equidade” (dezembro/1973), página 70 na tradução da Editora Sá de Costa (1ª edição, Portugal, 1975)

Limite de velocidade (mais um fragmento illichiano)

“A ordem de grandeza em que se coloca o ponto limite crítico da velocidade é demasiado baixa para ser levada a sério pelo utente e demasiado alta para afectar o camponês. Deste modo situa-se para ambos no ponto cego do seu campo visual. Ao camponês parecer-lhe-ia voar como um pássaro se pudesse trasladar-se de casa para um campo a 25 km de distância numa hora ou em menos, enquanto que o utente esquece que a enorme maioria dos habitantes de Londres, Paris, Nova York e Tóquio empregam mais de uma hora por cada 10 km de deslocação. O facto de a velocidade crítica para a circulação estar situada no ponto cego comum ao campo visual do utente e do camponês é o que torna tão difícil apresentar o assunto à discussão pública. O utente está intoxicado pelo consumo de altas doses de energia industrial e toca-se-lhe num nervo vivo ao tocar o ponto, enquanto que o camponês não vê razão para se defender de algo que desconhece.

A esta dificuladde geral para politizar o assunto das velocidades acresce outro obstáculo ainda mais evidente. O utente dos transportes não é apenas cliente das estradas. É quase sempre um homem moderno, o que quer dizer que também é cliente vinculado a outros sistemas públicos, tais como a escola, o hospital e o sindicato. Está condicionado a acreditar que só os especialistas podem compreender o porquê das ‘características técnicas’ segundo as quais os sistemas funcionam: só o médico lhe pode identificar e curar a febre, e só o professor diplomado lhe sabe ensinar o filho a ler. Está também acostumado a confiar nos especialistas e em que só eles compreendar por que é que o comboio suburbano parte às 8.15 e às 8.41, ou por que é que os automóveis se têm de tornar cada vez mais complexos e caros sem que para ele melhore a circulação. A ideia de que por um processo político se poderia encontrar uma característica técnica tão elementar como a ‘velocidade crítica’, aqui em estudo, parece-lhe fruto da imaginação ingénua de um avô, de um inculto, de um luddita ou de um demagogo irresponsável. O seu respeito pelo especialista que não conhece transformou-se em cega submissão às condições por aquele estabelecidas. A mistificação própria e típica do homem-cliente é o segundo obstáculo para o controle popular da circulação.

Existe um terceiro obstáculo à construção da circulação: tal reconstrução por iniciativa maioritária é potencialmente um exclusivo social. Se num só campo maior as massas chegassem a entender até que ponto foram fantoches de uma ilusão tecnológica, a mesma mutação de consciência poderia facilmente estender-se a outros campos. Se fosse possível identificar publicamente o valor natural máximo para as velocidades veiculares, como condição para o trânsito óptimo, seriam então muito mais fáceis análogas intervenções públicas na tecnostrutura. A estrutura institucional total está tão integrada, tão tensa e frágil, que a partir de qualquer ponto crítico se pode produzir um despenhamento. Se o problema do trânsito se pudesse resolver por meio de intervenção popular e sem referência ao especialista no campo do transporte, poder-se-ia então aplicar o mesmo tratamento aos problemas da educação, da saúde, do urbanismo e até das igrejas e dos partidos. Se, para todos os efeitos e sem ajuda de especialistas, os limites críticos de velocidade fossem determinados por assembleias representativas do povo, atingir-se-iam então as próprias bases do sistema político. Deste modo, a investigação que proponho é fundamentalmente política e subversiva.”

Ivan Illich, “Energia e Equidade” (dezembro/1973), página 67 na tradução da Editora Sá de Costa (1ª edição, Portugal, 1975)

O utente da indústria do transporte (mais Illich)

“Dado o seu impacto geográfico, a indústria do transporte modela, em definitivo, uma nova espécie de homens: os utentes. O utente vive num mundo alheio ao das pessoas dotadas da autonomia dos seus membros. O utente tem consciência da exasperante penúria de tempo provocada pela corrida quotidiana ao comboio, ao automóvel, ao metro, ao ascensor, que o transportam diariamente através dos mesmos canais e túneis num raio de 10 km a 25 km. Conhece os atalhos encontrados pelos privilegiados para escaparem ao exaspero engendrado pela circulação e que os conduzem aonde querem chegar, enquanto ele, o utente, tem que conduzir o seu próprio veículo de um lugar, onde preferiria não viver, para um emprego que preferiria evitar. O utente sabe-se limitado pelos horários dos comboios e autocarros, nas horas em que a sua mulher o priva do automóvel, mas vê os “executivos” deslocarem-se e viajarem pelo mundo quando e como muito bem lhes apetece. Paga o seu automóvel com dinheiro do seu bolso, num mundo onde os privilégios cabem ao pessoal dirigente das grandes firmas, universidades, sindicatos e partidos. Os pobres amarram-se ao seu carro, e os ricos utilizam o automóvel de serviço ou alugam-no à Hertz. O utente exaspera-se com a crescente desigualdade, a escassez de tempo e a sua própria impotência, mas, insensatamente, põe a sua única esperança em mais da mesma coisa: mais circulação por meio de mais transporte. Espera o alívio através de modificações de ordem técnica que hão-de afetar a concepção dos veículos, das estradas ou da regulamentação do trânsito. Ou então espera uma revolução que transfira a propriedade dos veículos para a coletividade e que, por meio de descontos nos salários, mantenha uma rede de transportes gratuitos, cujas seções mais velozes e caras serão outra vez apenas acessíveis àqueles a quem a sociedade considere mais importantes. Quase todos os projetos de reforma dos transportes que se supõem radicais padecem deste prejuízo: esquece-se o custo em tempo humano que resultaria da substituição do atual sistema por outro, mais “público”, se este último for tão rápido como o outro.

À noite o utente sonha com aquilo que os engenheiros lhe sugerem durante o dia através da televisão e das colunas pseudocientíficas dos jornais. Sonha com redes estratificadas de veículos de diferentes velocidades que convergem em interseções onde as pessoas podem encontrar-se nos espaços que lhes são concedidos pelas máquinas. Sonha com os serviços especiais da “Rede de Transportes” que dele se encarregarão definitivamente.

O utente não pode captar a demência inerente ao sistema de circulação baseado principalmente no transporte. A sua percepção da relação do espaço e do tempo tem sido objeto de uma distorção industrial. Perdeu a capacidade de se conceber como outra coisa que não seja um utente. Intoxicado pelo transporte, perdeu consciência dos poderes físicos, sociais e psíquicos de que o homem dispõe, graças aos seus pés. Esquece que o território é o homem que o cria com o seu corpo e toma por território aquilo que não passa de uma paisagem vista através de uma janela por um homem amarrado ao seu banco. Já não sabe marcar o âmbito dos seus domínios com o rasto do seus passos, nem encontrar-se com os vizinhos, passeando na praça. Já não se encontra com outro sem chocar, nem chega sem que um motor o arraste. A sua órbita pontual e diária alheia-o de todo o território livre.

Atravessando-o a pé o homem transforma o espaço geográfico em morada por ele dominada. Dentro de certos limites, a energia que aplica para se movimentar determina a sua mobilidade e a sua capacidade de domínio. A relação para com o espaço do utente de transportes é determinada por uma força física alheia ao seu próprio ser biológico. O motor mediatiza a sua relação com o meio ambiente e depressa o aliena de tal modo que depende do motor para definir o seu poder político. Ele que está condicionado a crer que com eles aumenta a capacidade dos membros de uma sociedade para participarem no processo político.

Nas suas reivindicações políticas o utente já não pede caminhos abertos, mas sim mais veículos que o transportem; quer mais daquilo mesmo que agora o frustra, em vez de pedir a garantia de que, em todos os sentidos, a prioridade caiba sempre ao peão. A libertação do utente consiste na sua compreensão de realidade: enquanto exigir mais energia para propulsionar com mais aceleração alguns indivíduos da sociedade, precipita a corrupção irreversível da equidade, do tempo livre e da autonomia pessoal. O progresso com que sonha não é mais do que a destruição melhor conseguida.”

Ivan Illich, “Energia e Equidade” (dezembro/1973), página 40 na tradução da Editora Sá de Costa (1ª edição, Portugal, 1975)

E com isso vou parar de copiá-lo, antes que copie o livro inteiro, que é excelente. Recomendo a quem se interessar que procure em bibliotecas ou em sebos.

Excerto de Illich sobre o transporte em 1973

“O homem americano típico consagra mais de 1500 horas por ano ao seu automóvel: sentado dentro dele, em marcha ou parado, trabalhando para o pagar, para pagar a gasolina, os pneus, as portagens, o seguro, as multas e os impostos para as estradas federais e os parques de estacionamento comunais. Dedica-lhe quatro horas por dia, nas quais se serve dele, se ocupa dele ou trabalha para ele. Não se levaram aqui em conta todas as suas atividades orientadas pelo transporte: o tempo que consome no hospital, no tribunal ou na oficina; o tempo passado diante da televisão a ver publicidade automobilística, o tempo gasto em ganhar dinheiro para viajar de avião ou de comboio. Com estas atividades faz, sem dúvida, marchar a economia, procura trabalho para os seus companheiros, receitas para os xeiques da Arábia, e dá justificação a Nixon para a sua guerra na Ásia. Mas se nos perguntarmos de que modo aquelas 1500 horas, que são uma estimativa pelo mínimo, contribuem para a sua circulação, a situação apresenta-se-nos sob diferente perspectiva. Aquelas horas servem-lhe para fazer uns 10 000 quilômetros de percurso, ou sejam 6 quilômetros por hora. É exatamente o mesmo que conseguem os homens nos países que não dispõem da indústria do transporte. Mas, enquanto o Norte-Americano dedica à circulação uma quarta parte do tempo social disponível, nas sociedades não motorizadas destinam-se ao mesmo fim entre 3% e 8% do tempo social. O que diferencia a circulação num país rico e num país pobre não é uma maior eficácia, mas sim a obrigação de consumir em altas doses as energias condicionadas pela indústria do transporte.”

Ivan Illich, “Energia e Equidade” (dezembro/1973), página 36 na tradução da Editora Sá de Costa (1ª edição, Portugal, 1975)

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