A criação musical do mundo

Os movimentos celestes nada mais são que uma canção contínua para várias vozes, percebida pelo intelecto e não pelo ouvido; uma música que, por meio de tensões discordantes, síncopes e cadências (…), progride na direção de certas resoluções determinadas, estabelecendo assim certas marcas no fluxo imensurável do tempo. Não é de causar surpresa, portanto, que o homem, imitando seu Criador, tenha, finalmente, descoberto a arte da notação musical, desconhecida dos antigos. O homem desejava reproduzir a continuidade do tempo cósimco dentro de uma breve hora, por meio de uma engenhosa harmonia de várias vozes, a fim de saborear uma amostra do prazer que o Criador Divino tem em Sua obras, e participar de sua alegria fazendo música na imitação de Deus.

(trecho de uma carta de Kepler citada por Arthur Koestler)

Os movimentos celestes como música, a música como imitação de Deus, a música como divina… Este era um pensamento bastante comum na Idade Média que foi deixado de lado com o tempo. Hoje acho que ninguém pensa nisso quando dança funk nas festas por aí.

Figura da música

Tolkien é um escritor que valorizo bastante. Não sou daqueles fãs incondicionais de Senhor dos Anéis, mas acho linda a maneira que ele tem para escrever. Vou colar aqui um trecho um pouco grande do início do livro “O Silmarillion”. Você não precisa ler até o final se não quiser, mas vale a pena ler como Tolkien falava da divindade de seu mundo e de como o mundo foi criado a partir da música.

Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele criou primeiro os Ainur, os Sagrados, gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o mais fosse criado. E ele lhes falou, propondo-lhes temas musicais; e eles cantaram em sua presença, e ele se alegrou. Entretanto, durante muito tempo, eles cantaram cada um sozinho ou apenas alguns juntos, enquanto os outros escutavam; pois cada um compreendia apenas aquela parte da mente de Ilúvatar da qual havia brotado e evoluía devagar na compreensão de seus irmãos. Não obstante, de tanto escutar, chegaram a uma compreensão mais profunda, tornando-se mais consonantes e harmoniosos.

E aconteceu de Ilúvatar reunir todos os Ainur e lhes indicar um tema poderoso, desdobrando diante de seus olhos imagens ainda mais grandiosas e esplêndidas do que havia revelado até então; e a glória de seu início e o esplendor de seu final tanto abismaram os Ainur, que eles se curvaram diante de Ilúvatar e emudeceram.

Disse-lhes então Ilúvatar: – A partir do tema que lhes indiquei, desejo agora que criem juntos, em harmonia, uma Música Magnífica. E, como eu os inspirei com a Chama Imperecível, vocês vão demonstrar seus poderes ornamentando esse tema, cada um com seus próprios pensamentos e recursos, se assim o desejar. Eu porém me sentarei para escutar; e me alegrarei, pois, através de vocês, uma grande beleza terá sido despertada em forma de melodia.

E então as vozes dos Ainur, semelhantes a harpas e alaúdes, a flautas e trombetas, a violas e órgãos, e a inúmeros coros cantando com palavras, começaram a dar forma ao tema de Ilúvatar, criando uma sinfonia magnífica; e surgiu um som de melodias em eterna mutação, entretecidas em harmonia, as quais, superando a audição, alcançaram as profundezas e as alturas; e as moradas de Ilúvatar encheram-se até transbordar; e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e este não estava mais vazio. Nunca, desde então, os Ainur fizeram uma música como aquela, embora tenha sido dito que outra ainda mais majestosa será criada diante de Ilúvatar pelos coros dos Ainur e dos Filhos de Ilúvatar, após o final dos tempos. Então, os temas de Ilúvatar serão desenvolvidos com perfeição e irão adquirir Existência no momento em que ganharem voz, pois todos compreenderão plenamente o intento de Ilúvatar para cada um, e cada um terá a compreensão do outro; e Ilúvatar, sentindo-se satisfeito, concederá a seus pensamentos o fogo secreto.

Agora, porém, Ilúvatar escutava, sentado, e por muito tempo aquilo lhe pareceu bom, pois na música não havia falha. Enquanto o tema se desenvolvia, no entanto, surgiu no coração de Melkor o impulso de entremear motivos da sua própria imaginação que não estavam em harmonia com o tema de Ilúvatar; com isso procurava aumentar o poder e a glória do papel a ele designado. A Melkor, entre os Ainur, haviam sido concedidos os maiores dons de poder e conhecimento, e ele ainda tinha um quinhão de todos os dons de seus irmãos. Muitas vezes, Melkor penetrara sozinho nos espaços vazios em busca da Chama Imperecível, pois ardia nele o desejo de dar Existência a coisas por si mesmo; e a seus olhos Ilúvatar não dava atenção ao Vazio, ao passo que Melkor se impacientava com o vazio. E no entanto ele não encontrou o Fogo, pois este está com Ilúvatar. Estando sozinho, porém, começara a conceber pensamentos próprios, diferentes daqueles de seus irmãos.

Alguns desses pensamentos ele agora entrelaçava em sua música, e logo a dissonância surgiu ao seu redor. Muitos dos que cantavam próximo perderam o ânimo, seu pensamento foi perturbado e sua música hesitou; mas alguns começaram a afinar sua música à de Melkor, em vez de manter a fidelidade ao pensamento que haviam tido no início. Espalhou-se então cada vez mais a dissonância de Melkor, e as melodias que haviam sido ouvidas antes soçobraram num mar de sons turbulentos. Ilúvatar, entretanto, escutava sentado até lhe parecer que em volta de seu trono bramia uma tempestade violenta, como a de águas escuras que guerreiam entre si numa fúria incessante que não queria ser aplacada.

Ergueu-se então Ilúvatar, e os Ainur perceberam que ele sorria. E ele levantou a mão esquerda, e um novo tema surgiu em meio à tormenta, semelhante ao tema anterior e ao mesmo tempo diferente; e ganhava força e apresentava uma nova beleza. Mas a dissonância de Melkor cresceu em tumulto e o enfrentou. Mais uma vez houve uma guerra sonora, mais violenta do que antes, até que muitos dos Ainur ficaram consternados e não cantaram mais, e Melkor pôde dominar. Ergueu-se então novamente Ilúvatar, e os Ainur perceberam que sua expressão era severa. Ele levantou a mão direita, e vejam! Um terceiro tema cresceu em meio à confusão, diferente dos outros. Pois, de início parecia terno e doce, um singelo murmúrio de sons suaves em melodias delicadas; mas ele não podia ser subjugado e acumulava poder e profundidade. E afinal pareceu haver duas músicas evoluindo ao mesmo tempo diante do trono de Ilúvatar, e elas eram totalmente díspares. Uma era profunda, vasta e bela, mas lenta e mesclada a uma tristeza incomensurável, na qual sua beleza tivera principalmente origem. A outra havia agora alcançado uma unidade própria; mas era alta, fútil e infindavelmente repetitiva; tinha pouca harmonia, antes um som uníssono e clamoroso como o de muitas trombetas soando apenas algumas notas. E procurava abafar a outra música pela violência de sua voz, mas suas notas mais triunfais pareciam ser adotadas pela outra e entremeadas em seu próprio arranjo solene.

No meio dessa contenda, na qual as mansões de Ilúvatar sacudiram, e um tremor se espalhou, atingindo os silêncios até então impassíveis, Ilúvatar ergueu-se mais uma vez, e sua expressão era terrível de ver. Ele então levantou as duas mãos, e num acorde, mais profundo que o Abismo, mais alto que o Firmamento, penetrante como a luz do olho de Ilúvatar, a Música cessou.

Então, falou Ilúvatar e disse: – Poderosos são os Ainur, e o mais poderoso dentre eles é Melkor; mas, para que ele saiba, e saibam todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que vocês entoaram, irei mostrá-las para que vejam o que fizeram. E tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.

E então os Ainur sentiram medo e ainda não compreenderam as palavras que lhes eram dirigidas; e Melkor foi dominado pela vergonha, da qual brotou uma raiva secreta. Ilúvatar, porém, ergueu-se em esplendor e afastou-se das belas regiões que havia criado para os Ainur; e os Ainur o seguiram.

Entretanto, quando eles entraram no Vazio, Ilúvatar lhes disse: – Contemplem sua Música! – E lhes mostrou uma visão, dando-lhes uma imagem onde antes havia somente o som. E eles viram um novo Mundo tornar-se visível aos seus olhos; e ele formava um globo no meio do Vazio, e se mantinha ali, mas não pertencia ao Vazio. E, enquanto contemplavam perplexos, esse Mundo começou a desenrolar sua história, e a eles parecia que o Mundo tinha vida e crescia. E, depois que os Ainur haviam olhado por algum tempo, calados, Ilúvatar voltou a dizer: – Contemplem sua Música! Este é seu repertório. Cada um de vocês encontrará aí, em meio à imagem que lhes apresento, tudo aquilo que pode parecer que ele próprio inventou ou acrescentou.

(início de “O Silmarillion”, história da criação do mundo das obras de Tolkien)

Depois de Kepler surgiu Galileu e com ele todas essas idéias medievais foram embora, foram reduzidas à matemática. Criou-se a física e a química. A ciência distanciou-se da fé, tornando-se um ramo teoricamente mais exato. O mundo não foi mais tão musical, o que não significa que ele tenha melhorado, nem piorado. Apenas perdeu a fé na música.

Hoje em dia a religião ocidental é a cientologia, por mais que mais de 90% desta gente se diga cristã. Não existe mais uma fé incondicional, mas uma crença com sentido. Uma crença exata em algo invisível, porque é teórico. Ou então, como o Ibrahim defende e eu concordo, o pop é a nova religião.

Mas afinal, como já perguntei, será que ciência e religião são tão diferentes? Não são simplesmente duas crenças diferentes? Na minha opinião, acreditar é correr perigo de estar errado. Não há como dizer se o mundo é fruto de uma grande explosão, se foi uma música que o criou, ou se ele é somente fruto da minha imaginação. O que você acha?

Além do bem e do mal

Além do bem e do mal

Mais uma sugestão de leitura do Mal Vicioso! O livro da vez é: Além do bem e do mal

Escrito por Nietzsche e publicado por várias editoras aqui no Brasil, “Além do bem e do mal” é um livro que não pode faltar na cabeceira de um filósofo. A obra desde seu primeiro capítulo critica filosofias metafísicas, religiões, moralismos e verdades. Faz-nos refletir sobre os nossos valores, ética e sobre a natureza do homem.

Nota: O estilo aforismático de autor traz tantas frases de tamanho efeito que resolvi me privar de colocar alguma aqui para não desprezar as outras.

O prelúdio a uma filosofia do futuro é um livro pesado, que deve ser digerido com muita atenção. Ainda estou no terceiro capítulo (A natureza religiosa), mas não posso deixar de recomendar esta obra excepcional de Nietzsche, que talvez hoje não fosse tão incompreendido (ou talvez o mundo não tenha mudado tanto assim nos últimos cem anos…).

Fazer teatro de obras de ficção é errado?

Religion is the root cause of all terrorism

Os manifestantes acreditam que o museu trata a religião de uma forma extremista. Eles reclamam ainda que o local nega a ciência, pois classifica as histórias da Bíblia como uma verdade absoluta.

O Museu da Criação foi desenvolvido por um diretor de um estúdio de cinema americano e traz cenários realistas, bonecos animados de pessoas e dinossauros em tamanho real e muitos efeitos especiais. Os visitantes podem ver uma réplica do que seria a Arca de Noé e até animais que habitariam o mundo quando Adão e Eva foram expulsos do Jardim do Éden, histórias clássicas da Bíblia.

De acordo com a direção, o Museu da Criação é um programa para toda a família e foi planejado com o objetivo de fazer mais pessoas acreditarem que Jesus Cristo existiu e deve ser considerado o criador da vida.

Notícia completa no Terra.

Eu gostaria de saber se por acaso eu sou o único anti-religioso que acho os manifestantes idiotas ou se vocês concordam comigo. Afinal, há algum problema de criar representações de um livro? Isso me lembra aqueles indivíduos que criticam O Código da Vinci por ser uma história inventada. Em algum ponto na história do mundo foi errado criar obras de ficção? Adorarei ler o seu comentário.

Em que Deus você acredita?

Uma pesquisa do Datafolha publicada hoje na Folha de São Paulo mostra que 97% dos brasileiros acreditam em Deus, 2% são agnósticos e 1% são ateus. Às vésperas da chegada do Papa Bento XVI no Brasil, 64% dos brasileiros se dizem católicos, 10% menos do que numa pesquisa realizada em 1996. 22% são evangélicos, 6% não possuem religião, 3% são espíritas e os outros 5% pertencem a outras religiões.

Acreditar em Deus… A minha professora de história me escreveu há algum tempo uma reflexão muito interessante:

Pessoalmente tenho dificuldades em definir “no que” acredito porque minhas concepções de divindade não condizem com algo que tenha uma forma definida… Não acredito no sagrado como uma coisa, mas convivo diariamente com coisas que, creio eu, são manifestações do sagrado… algo meio panteísta, entende? Não creio em um deus antropomórfico e centralista…creio que sou responsavel por meus atos e não abdico de nada por medo de um juízo final… Tenho dificuldade, no entanto, em definir com exatidão o que seria esse deus-tudo.

Falar em deus é totalmente subjetivo. Deus pode representar bons sentimentos, bons pensamentos, pode representar a humanidade… Creio que o problema da definição são as religiões que transformam Deus num “cara”, no Godot. Na minha humilde opinião, é ridículo temer um ser superior e fingir seguir leis que não são seguidas por ninguém.

Se o nosso país fosse mesmo cristão e católico não precisaríamos de governantes. A religião deveria governar todas as pessoas, porque ela já possui leis suficientes para isto. Vejam os 10 mandamentos, os sete pecados capitais… Para que haver julgamentos na Terra se todos têm certeza do Juízo Final?

Na época do Império Romano, o César era visto como um ser divino. Quando surgiu um cara dizendo ser Deus (aquele tal Jesus), César perseguiu todos os cristãos. Ele, com razão, não queria que adorassem o outro rei e as outras leis. Em 300 um fato que chama a atenção é a quantidade de vezes que os persas chamam Xerxes de divino.

A religião é o ópio do povo. Faz bem ter uma religião, participar de uma comunidade, então as pessoas acabam começando a acreditar em tudo o que é falado para elas… Como disse a Carol, igrejas são locais de paz. Como já disse Leonardo Boff, o problema da Igreja Católica é o alto escalão, mas os padres são pessoas boas que acreditam no que fazem, assim como os reais seguidores (que são menos que metade dos 64%).

Enfim, no que devemos acreditar? Bom… Justamente por religião ser uma crença não há nenhuma certeza. Creio que a religião dominante do nosso país e do mundo inteiro hoje é o cientificismo. Como já disse e repetiu o reverendo várias vezes: se acredita em Deus, não vá ao hospital. Fique em casa orando. Eu gosto da ciência, mas não acho que seja algo exato e acho que existem coisas além da ciência ou pelo menos muito longe de serem descobertas por ela. Então, na minha ingenuidade, prefiro acreditar nas pessoas sem adorar nenhum “deus a nossa imagem e semelhança” e nem um monte de caras loucos de roupa branca e óculos fundo-de-garrafa.

Criando um meme

O Mal Vicioso, melhor blog do Brasil, pela primeira vez resolveu criar um meme. E convida para responder a pergunta “Em que Deus você acredita?” os seguintes amigos blogueiros:

Descriminalização do aborto

Lendo o FYI, tive vontade de escrever sobre o tema. Lembro que fiz uma dissertação sobre o aborto pra professora de biologia no ano passado. Na época, após pesquisar melhor sobre o assunto, cheguei a conclusão que o aborto deveria ser legalizado, mas não deveria ser realizado.

O aborto voluntário é legalizado na maioria dos países desenvolvidos. No entanto, muitos países continuam a possuir leis que proíbem a interrupção da gravidez. É o caso do Brasil, onde o aborto só é permitido em casos de risco de morte para a gestante ou em casos de estupro.

O aborto realizado de forma ilegal é muito perigoso para a gestante. Ele é feito em clínicas clandestinas e pela própria mulher, usando materiais inadequados e sem higiene. Esses métodos põe em risco a vida e a saúde da gestante. Descriminalizar o aborto não é incentivar a sua prática, mas permitir que todas as mulheres que tomem essa difícil decisão possam realizá-lo com condições de higiene e segurança.

A interrupção da gravidez é um tema polêmico porque envolve aspectos éticos, sociais e religiosos. Não vejo o aborto como um assassinato, mas pouco importa o que eu acho, já que a decisão é da mulher. Por isso, creio que ele não deve ser ilegal. Acredito que a mãe deva ter o direito de não botar no mundo um filho que ela não deseja e que pode ter uma vida pior do que simplesmente não nascer.

Ainda mais que, se a mãe quiser abortar mesmo um filho, não é a lei que vai impedí-la.

E vocês, o que acham?

© 2005–2020 Tiago Madeira