Sobre piratas e consciência de classe

“Certa vez, disseram a Eston que Jaime I da Inglaterra havia lhe oferecido o perdão. ‘Por que eu deveria obedecer às ordens de um rei’, perguntou ele, ‘quando eu mesmo sou uma espécie de rei?’ Este gracejo nos lembra vários discursos registrados na General History of the Pyrates, de Defoe, que insinua a existência de uma ‘ideologia pirata’ (se este não é um termo pretensioso demais), uma atitude meio proto-individualista-anarquista, embora não-filosófica, que parece ter inspirado os bucaneiros e corsários mais inteligentes e com mais consciência de classe. Defoe relata que um pirata conhecido como capitão Bellamy fez este discurso para o capitão de um navio mercante que ele tinha capturado. O capitão do navio mercante havia acabado de recusar um convite para se juntar aos piratas:

Lamento que eles não te deixem ter tua chalupa de volta, porque eu não faço mal a quem quer que seja quando não é para meu próprio proveito. A chalupa que se dane, temos que afundá-la, e ela poderia ser útil a ti. Tu és um banana dissimulado, como o são todos que se submetem a serem governados por leis que os ricos fizeram para a própria segurança deles, e os malcriados covardes não têm a coragem, por outro lado, de defender o que conseguem por meio de logro. Mas que se danem: dane-se o bando de velhacos astutos, e vós, que estais a serviço deles, ó bando de mariquinhas estúpidos. Eles nos difamam, aqueles salafrários, quando só temos esta diferença: a de que eles roubam dos pobres sob a proteção da lei, sem dúvida, e nós espoliamos os ricos sob a proteção de nossa própria valentia. Não seria melhor então tu seres um de nós do que ires bajular aqueles patifes para conseguir emprego?

Quando o capitão respondeu que sua consciência não permitiria que ele infringisse as leis de Deus e dos homens, o pirata Bellamy continuou:

Tu tens uma consciência diabólica, ó velhaco. Eu sou um príncipe livre, e tenho tanta autoridade para travar guerra contra o mundo todo quanto quem tem cem navios no mar e um exército de cem mil homens nos campos. E isto minha consciência me diz: não adianta argumentar com covardes lamurientos que permitem que seus superiores os saiam chutando pelo convés à vontade.

Peter Lamborn Wilson, “Utopias piratas: mouros, hereges e renegados”, página 52 na tradução da Editora Conrad (2001)

Terrorismo Poético

Hakim Bey

Estranhas danças em saguões de bancos 24 horas. Espetáculos pirotécnicos não autorizados. “Land-art”, “earth-works” como bizarros artefatos alienígenas esparramados em parques do estado. Invada casas, mas ao invés de roubar deixe objetos Poético Terroristas. Seqüestre alguém e faça-o feliz.

Escolha alguém ao acaso e convença-o de que ele é o herdeiro de uma enorme, inútil e incrível fortuna – digamos 5000 milhas quadradas na Antártica, ou um velho elefante de circo, ou um orfanato em Bombay, ou uma coleção de ingredientes alquímicos. Mais tarde eles perceberão que por alguns poucos momentos acreditaram em algo extraordinário e talvez sejam levados, como resultado, a buscar algum modo de existência mais intenso.

Coloque placas de metal comemorativas em lugares (públicos ou privados) onde você experimentou uma revelação ou teve uma experiência sexual particularmente satisfatória, etc.

Fique nu por um sinal. Organize uma greve em sua escola ou local de trabalho tendo por base o fato de que ambos não satisfazem sua necessidade de indolência e beleza espiritual.

Grafitti-art emprestou alguma graça aos feios metrôs e aos rígidos monumentos públicos – arte-poético-terrorista também pode ser criada para locais públicos: poemas rabiscados em lavatórios de tribunal, pequenos fetiches abandonados em parques e restaurantes, xerox-art sob os limpadores de pára-brisa de carros estacionados, slogans em letras grandes colados em paredes de playgrounds, cartas anônimas enviadas a destinatários aleatórios ou escolhidos (fraude postal), transmissões de rádio piratas, cimento fresco…

A reação da audiência ou o choque estético produzido pelo Terrorismo Poético deve ser pelo menos tão forte quanto a emoção do terror – repugnância poderosa, excitação sexual, temor supersticioso, súbito arroubo intuitivo, angústia dadaesca – não importa se o Terrorismo Poético tem por alvo uma ou várias pessoas, não importa se ele é “assinado” ou anônimo: se ele não mudar a vida de alguém (além do artista), ele falha.

Terrorismo Poético é um ato em um Teatro da Crueldade que não tem palco, não tem fileiras de assentos, não tem bilhetes e não tem paredes. A fim de funcionar totalmente, o Terrorismo Poético deve estar categoricamente divorciado de todas as estruturas convencionais de consumo de arte (galerias, publicações, mídias). Até mesmo as táticas de guerrilha Situacionista de teatro de rua talvez estejam muito bem conhecidas e esperadas agora. Uma esquisita sedução conduzida não apenas pela causa da satisfação mútua, mas também como um ato consciente em uma vida deliberadamente bela – este o Terrorismo Poético último. O terrorista poético comporta-se como um trapaceiro cujo objetivo não é dinheiro, mas MUDANÇA.

Não faça Terrorismo Poético para outros artistas, faça-o para pessoas que não perceberão (pelo menos por alguns momentos) que o que você fez é arte. Evite categorias artísticas reconhecíveis, evite a política, não fique por perto para debater, não seja sentimental; seja rude, corra riscos, vandalize apenas o que deve ser desfigurado, faça algo de que as crianças se lembrarão por toda a vida – mas não seja espontâneo a não ser que a Musa do Terrorismo Poético tenha te possuído.

Vista-se. Deixe um nome falso. Seja legendário. O melhor Terrorismo Poético é contra a lei – mas não seja pego. Arte como crime; crime como arte.

(Hakim Bey)

© 2005–2020 Tiago Madeira