Illich sobre a bicicleta

“O homem move-se com eficácia sem ajuda de qualquer aparelho. Faz caminho a caminhar. A locomoção de cada grama do seu próprio corpo ou da sua carga, por cada quilômetro percorrido em cada dez minutos, consome-lhe 0,75 calorias. Comparando-o a uma máquina termodinâmica, o homem é mais rendível que qualquer veículo motorizado, que consome pelo menos quatro vezes mais calorias no mesmo trajecto. Além disso, é mais eficiente que todos os animais de peso comparável. […]

O homem inventou, há um século, uma máquina que o dotou de uma eficiência maior ainda: a bicicleta. Tratava-se de uma invenção cheia de novidade, à base de materiais novos, impensados nos tempos do jovem Marx e combinados numa engenhosa tecnologia. […] Com a bicicleta o homem ultrapassa o rendimento possível de qualquer máquina e de qualquer animal evoluído.

Além disso, a bicicleta não ocupa muito espaço. Para que 40 000 pessoas possam cruzar uma ponte numa hora movendo-se a 25 km por hora, é necessário que aquela tenha 138 m de largura se viajarem de automóvel, 38 m se viajarem de autocarro e 20 m se o fizerem a pé; em contrapartida, se forem de bicicleta, a ponte não necessita mais de 10 m de largura. Só um sistema hipermoderno de comboios rápidos a 100 km por hora e sucedendo-se a intervalos de 30 segundos conseguiria passar aquela quantidade de gente por uma ponte semelhante no mesmo tempo.

Não apenas em movimento, mas também estacionado, existe uma diferença enorme entre o espaço que ocupa o veículo potencialmente rápido e a bicicleta. No espaço em que se encontra 1 automóvel cabem 18 bicicletas. Para saírem dos parques de estacionamento de um estádio, 10 000 pessoas em bicicleta necessitam de uma terça parte do tempo que precisa o mesmo número de pessoas que utilizam autocarros.

Com bicicleta o homem pode cobrir uma distância anual superior, dedicando-lhe no total menos tempo e exigindo menos espaço para o fazer e muito pouca inversão de energia física que não seja parte do seu próprio ciclo vital.

Além disso, as bicicletas são baratas. Com uma fracção das horas de trabalho que a compra do automóvel exige ao gringo, o chinês, ganhando um salário muito mais baixo, compra a sua bicicleta, que lhe dura toda a vida, ao passo que o automóvel, quanto mais barato, mais depressa tem de ser substituído. O mesmo se pode dizer a propósito das estradas. Quanto maior for o número de cidadãos que se desloquem de automóvel para as suas casas, tanto mais se corrói o território nacional. O automóvel está, inevitavelmente, ligado à estrada, o que não acontece com a bicicleta. O ciclista, quando não pode ir montado na bicicleta, empurra-a. O raio diário de trajectos aumenta para todos por igual, sem que por isso diminua para o ciclista a intensidade de acesso. O homem que dispõe de uma bicicleta converte-se em dono dos seus próprios movimentos, sem estorvar o vizinho. Se há quem pertenda que em matéria de circulação é possível conseguir algo de melhor, tem agora oportunidade de o provar.

A bicicleta é um invento da mesma geração que criou o veículo a motor, mas as duas invenções são símbolos de avanços feitos em direcções opostas pelo homem moderno. A bicicleta permite a cada um controlar o emprego da sua própria energia; o veículo a motor, inevitavelmente, torna rivais entre si os utentes, por causa da energia, do espaço e do tempo. No Vietname, um exército hiperindustrializado não conseguiu derrotar um povo que se desloca à velocidade da bicicleta. Isto deveria fazer-nos meditar: talvez a segunda forma do emprego da técnica seja superior à primeira. Naturalmente, fica ainda por ver se os vietnamitas do Norte estão dispostos a permanecer dentro dos limites de velocidade que são os únicos capazes de respeitar os próprios valores que tornaram possível a sua vitória. Até ao momento presente, os bombardeiros americanos privaram-nos de gasolina, de motores, de estradas, e origaram-nos a empregar uma técnica também moderna, muito mais eficaz, equitativa e autónoma do que aquela que Marx poderia ter imaginado. Falta agora ver se, em nome de Marx, não se vão lançar numa industrialização quantititativamente tão superior àquilo que Marx pôde prever que se torne impossível a aplicação dos ideais por ele formulados.”

Ivan Illich, “Energia e Equidade” (dezembro/1973), página 70 na tradução da Editora Sá de Costa (1ª edição, Portugal, 1975)

A culpa é de quem?

Bicicleta roubada. A culpa é de quem? Pense nas alternativas e responda nos comentários:

  • Do filho da puta que roubou a minha bicicleta.
  • Dos pais do cara que roubou a minha bicicleta que não souberam educá-lo ou não tinham condições de tê-lo.
  • Dos políticos que excluíram o cara que roubou minha bicicleta.
  • De toda a sociedade que excluiu o cara que roubou minha bicicleta.
  • Das drogas que fazem pessoas irem à loucura.
  • Da polícia que não está cuidando da segurança dos cidadãos.
  • Minha, que não deveria ter deixado a bicicleta naquele local. Aceite o mundo do jeito que ele é.
  • Minha, que deveria ter saído mais cedo da casa da Carol. O mundo é assim.
  • Minha, que nem deveria andar de bicicleta em Itajaí. É perigoso, não há o que fazer pra mudar isso.
  • Minha, que aliás não deveria nem sair de casa, porque o mundo é assim e pronto.
  • Do meu irmão, que comprou um cadeado vagabundo.
  • Roubar bicicleta não é errado. Posse e propriedade não deveriam existir.

Às vezes eu perco a esperança de transformar as pessoas, mudar as suas mentalidades. Às vezes eu acho que eu estou tentando fazer algo por gente que não merece. Mas aí minha cabeça volta ao lugar e acho que o problema não é do cara que roubou a minha bicicleta, mas de uma porção de erros de todos nós.

A mentalidade do cara que roubou a minha bicicleta é como a minha. A minha bicicleta vale dinheiro, eu preciso de dinheiro. Eu não posso deixar que roubem minha bicicleta pelo mesmo motivo que ele roubou a minha bicicleta.

Não é por isso que eu perdôo ele. A culpa também é dele. No meu mundo utópico as pessoas não precisam de leis, mas respeitam os outros. Roubar a minha bicicleta quando eu vou voltar pra casa às 20h é um desrespeito. Ele rouba sem se preocupar comigo. Eu não faria isso, então a mentalidade dele é podre.

A mentalidade das pessoas não é culpa delas, embora nós sempre achemos e falemos que é. É culpa de quem está perto e ensina as pessoas com exemplos e com a sua própria vida. Não sei a história desse cara, mas acho difícil a culpa ser somente dele.

A minha bicicleta foi roubada por uma série de erros, uma série de problemas sociais, uma série de ações de várias pessoas que contribuíram para o mundo se tornar o que é. Como nós vamos fazer pra mudar isso? Ou é melhor se acostumar com isso e se contentar com o mundo da maneira que é?

E afinal… o que importa de quem é a culpa?

Bicicleta roubada

31/01. 20h.

Um indivíduo tirou o cadeado da minha Caloi Terra 21v vermelha e azul. Saiu correndo pela rua Camboriú. No centro da cidade, na frente da casa da Carol. Bem na hora que eu estava saindo pra pegar a bicicleta. No começo laggei. Nessas situações eu sempre bóio alguns segundos até perceber o que está acontecendo. Eu vi de longe o cara correndo. Tentei correr atrás do cara. Sujeito negro, camiseta branca, calção preto e chinelo. Desisti.

Liguei pra polícia. Cinco minutos de perguntas e do policial com uma calma impressionante no telefone. Com uma determinação incrível, 10 minutos depois, o ladrão já poderia estar em Balneário e o policial afirma: “Vamos mandar uma viatura”. Ótimo.

Aí fui à delegacia e registrei o BO. A polícia não tá nem aí. Devem ter coisas mais importantes pra se preocupar. Itajaí deve ter uns 50 roubos de bicicleta por dia. A cidade é reta, todo mundo anda de bicicleta.

Anteontem, num ponto de ônibus, um desconhecido ficou contando por mais de 15 minutos como roubaram a bicicleta dele e como estava perigoso deixar a bicicleta em qualquer lugar de Itajaí. Acho que era um sinal. Eu devia ter levado o estranho mais a sério.

© 2005–2020 Tiago Madeira